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quinta-feira, 22 de abril de 2010


“Roteiro de cheiros”
Sábado de manhã. Os sinos tocam a finados perturbando a beleza de um sol arredio e a tranquilidade de um curto repouso. - Quem terá morrido? Olho, instintivamente, para o outro lado da praça na esperança de ver os anúncios da morte. Dois! Aproximei-me e fico surpreendido. Sempre que conheço alguém, seja qual for a idade, a morte, mesmo que anunciada, causa-me uma certa surpresa e um profundo mal-estar, porque não consigo imaginar que venha a acontecer. Mas tem que acontecer.
Conhecia perfeitamente um dos dois. Quanto à outra, o nome dizia-me qualquer coisa, mas não consegui identificar quem era, até que, durante a tarde, me disseram quem era. Foi então que uma sucessão de pensamentos começou a percorrer o meu córtex frontal. De súbito, senti o cheiro do petróleo misturado com o ar adocicado do armazém, ambos dominados pelo forte aroma libertado pelos bacalhaus salgados pendurados das traves do armazém, a lembrar as flores de papel dos arrais populares. Gostava de cheirar aquela estranha mistura, inconfundível, de uma forma de comércio que em tempos caracterizava as pequenas comunidades. Ao odor típico do espaço comercial associei o sabor das pequenas lascas de bacalhau, que amavelmente, a dona concedia a pedido, ou que surripiava sem que visse. Chupava aqueles pedaços com um prazer difícil de explicar. Estas lembranças originaram, ato contínuo, a criação de um roteiro de cheiros e aromas que poderia identificar com os olhos fechados. Ao sair de casa, o cheiro característico da serradura da fábrica dava-me os bons dias. Ao passar pelo Costa levava nas ventas com a erupção típica de uma taverna, que quase dispensava o loureiro. Mais abaixo, a padaria anunciava a sua presença inundando-me do sabor do pão fresco, para logo a seguir levar com uma corrente de ar a cheirar a álcool proveniente da barbearia de portas abertas. Bastava dar meia dúzia de passos e o cheiro a colas marcava o território do sapateiro que, rapidamente, dava lugar aos odores nauseabundos e agressivos do talho. Passava à velocidade da luz na ânsia de me acalmar, aspirando os aromas adocicados da farmácia vizinha em que os perfumes imperavam. Mais à frente, salivava com as invisíveis nuvens de prazer provenientes da torrefacção do café ou dos amendoins, ao ponto de a roupa ficar impregnada para todo o dia. Aqui, invariavelmente, parava durante algum tempo. Ao passar pela Fornecedora não ligava aos aromas que as farinhas se entretinham a libertar dos sacos acumulados, a não ser nos dias em que a torrefacção não funcionava. Do outro lado da rua, além do cheiro típico da petroleira, o suor das mulas e dos cavalos, e os excrementos dos animais, que iam ao ferrador, não causavam grande asco. Às tantas deveria ser um mero efeito da queima do carvão e do calor provenientes das forjas do meu primo Porrudo, situado praticamente em frente. Ao passar pela Estação, o cheiro a creosote usado nas travessas estimulava os sentidos. De todos, o que mais me seduzia era o sensual cheiro a café de saco que inundava o pequeno jardim proveniente do “Zé do Café”. Um cheiro inconfundível que se perpetuava noite e dia. Na própria gare, o cheiro à cola de trigo entremeava-se com o aroma de laranjas do vendedor Humberto. Ao lado, antes de chegar aos sanitários, lançavam, frequentemente, num pequeno tanque, restos do carbureto que, em contacto com a água, libertava o gás que tinha o condão de penetrar profundamente no nariz ao ponto de me provocar dores, conseguindo, deste modo, reduzir a desagradável sensação olfactiva do mijo em decomposição. Acelerava o passo, ou melhor, corria para chegar ao jardim florido que, discretamente, perfumava os sentidos. Quando ia à vila, passava por uma tasca onde os aromas acumulados de vinho impregnavam tanto as madeiras das habitações como os paralelepípedos da rua. Se fosse pela calçada, o armazém de sal, fonte de uma secura fria e sepulcral, incomodava-me sobremaneira. Logo a seguir, passava pela fábrica de sabão que lançava as escorrências a céu aberto, obrigando-me a saltar os carreiros azulados e apontar o nariz para a resineira na esperança de aspirar os vapores inebriantes do pez. Ao descer a calçada romana retardava o passo para desfrutar a tranquilidade dos aromas das mimosas que desapareciam a meio da ponte. Neste local, aspirava longa e profundamente a frescura e o cheiro único da água doce do rio, capaz de limpar todos os cheiros e até os fedores emanantes de muitas almas. Na subida, regressavam os aromas das mimosas substituídos pelas fragrâncias das flores dos campos e dos jardins anunciadores da chegada à vila. Nesta, tinha que passar pela praça onde o cheiro a peixe conseguia reinar sobre quaisquer outros. Até as pedras não conseguiam libertar-se de tão desagradável fedor.
Cheiros? Muitos! Mesmo muitos, ao ponto de conseguir desenhar mapas com base nos mesmos. Mapas geográficos, mapas de sentimentos, mapas de angústias, mapas de desejos, mapas de tristeza e de alegria. Mapas de vida.
O que seria da vida, e da memória, se não fossem os cheiros e aromas? Uma sensaboria.
A leitura de uma morte foi suficiente para estimular um roteiro de diferentes odores. É pena que a escrita não consiga libertá-los. Talvez a leitura consiga...
Salvador Massano Cardoso

1 comentário:

Anónimo disse...

ola bom dia....venho por este meio lhe dizer que adorei o seu blog....eu sou de Ovoa....e nas fotos que tem publicadas...eu e as minhas manas estamos presentes....pois fomos alunas da abertura da creche DO PADRE TOMAS....gostaria de saber se tem mais fotos dessa época e vidios....pois fiquei feliz quando vi que estava nas fotos...comprimentos e ate breve...ANA PAULA ARAUJO...

VIMIEIRO - SUAS HISTÓRIAS E VIVÊNCIAS

Quem seria a pobre velha que se chamava Jacinta Pena?
Foi sem dúvida uma habitante do Vimieiro, que os anos enterraram no esquecimento. A velha Jacinta Pena, lá nos anos de 1915, vendia na estação dos Caminhos de Ferro, tabacos, pirolitos, águas das nossas fontes, frutos dos nossos pomares. Fez o último comboio e meteu-se a caminho, de trémulos passos, na estrada enlameada, numa noite de bréu. Guiava-a uma lanterna e dezoito tostões no bolso. Nessa noite de bréu, teve um mau encontro, em plena estrada um pouco acima as casas que marginam a via pública quase em frente do caminho que dá ingresso para o Vimieiro. Aí foi cercada por ladrões que lhe roubaram o produto do dia de trabalho que foram os dezoito tostões e a lanterna que a alumiava.
Por aqui passou um ser impar de bondade, o espanhol D. Salvador Cabanes Torres, que foi um mártir. Católico fervoso, D. Salvador foi gerente da fábrica de Serração C. Dupin e Companhia, aqui no Bairro da Estação. Era casado com D. Pura Burguete Cabanes Torres, uma senhora que na capelinha do Sr. da Agonia rezava o terço em espanhol com a comunidade do Vimieiro. Os seus três filhos chamavam-se: Jesus, Maria e José.
Este senhor ajudou o meu avô materno, Salvador Rodrigues de Sá, a morrer ainda na flor de idade, quando a vida se lhe apresentava risonha e repleta de felicidade. Apertava a mão do meu avô e na outra segurava o crucifixo dando-lhe força e alento na sua passagem da vida para a morte e dizia: "força xará".
Nicanor, um filho desta terra, e filho também da costureira Srª. Maria dos Anjos chamou-lhe "um simpático cavalheiro que entre nós conta com as melhores simpatias" (27 de Outubro se 1927).
Na sexta-feira, dia 15 de Janeiro de 1929, partiu no comboio correio da manhã, perante uma sentida e derradeira despedida, dos amigos.
De Valência, Espanha, terra da sua naturalidade, mandou 14 lindas estampas alusivas à Vida de Cristo, representando a Via Sacra e medindo cada uma delas, impressas na Alemanha, 0.65*0.39, que ofertou à Igreja Matriz de Santa Comba Dão. Para a Banda Santacombadense enviou as músicas, "La Fiesta Valenciana", "El Falero Serrano", a "Cancion del Soldado" bem como muitos livros para a biblioteca Alves Mateus.
Este senhor D. Salvador e seu filho, D. José Cabanas Torres, foram mártires da Guerra Civil espanhola, pois foram fuzilados em Valência quando os marxistas desencadearam uma luta violenta contra a Igreja e os seus filhos. (1936-1939).
D. Salvador e o seu filho, não se deixaram intimidar pelas ofensas, os insultos, a morte e percorreram o caminho da cruz, para exprimir o maior testemunho aceitando voluntariamente o martírio. Aqui, não se esqueceram das suas mortes e mandaram-lhe rezar uma piedosa missa. A casa onde viveram e que foi feita especialmente para esta família, lá esta na rampa da padaria olhando o casario de Santa Comba, os caminhos de ferro, a paisagem verdejante e as janelas onde D. Pura chamava os seus filhos: Jesus,... Maria ... José ...
Vimieiro
Elsa Silvestre do Amaral

Benemérito-Escola Cantina Salazar 1946

Benemérito-Escola Cantina Salazar 1946

Fontanário do Vimieiro 1950

Fontanário do Vimieiro 1950

Bairro da Estação, 28 de Agosto de 1927

Bairro da Estação, 28 de Agosto de 1927

Santa Cruz 1956

Santa Cruz 1956